segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

pOVO - De Renata Martins

A gente se sente como uma pesca viva amassada dentro de uma condução, seja ela ônibus, metrô ou mesmo lotação.

Dizem que a gente se acostuma. Não acho, não creio que a gente se acostume. Acho que... é, acho que a gente realmente se acostuma, sinto que nós nos calamos, engolimos a seco como a farinha do almoço, o silêncio sem sucesso que corta a garganta na ânsia de se libertar.

A gente se sente palhaço, acreditando há anos nas promessas dos governantes, nos descontos dos feirantes, nas doze vezes sem juros, no aumento de salário há muito esperado, na promoção sonhada, com o sapo encantado, com o muito obrigado. A gente nem precisa de espelho para ver que o nariz continua cada vez mais vermelho. No andar apressado, vejo que não existe somente um palhaço.

A gente se sente tão só neste mundão lotado, parece que nossas idéias, nossos ideais são somente brilhantes para nós mesmos, parece que somente o nosso sol nasce à leste, parece que somos todos surdos, mudos, cegos. Se não somos, fazemos questão de tapar os ouvidos, a boca e os olhos e nos fingimos de rocha sem sentimentos, apenas com sedimentos, sem sentidos, sem...

Não choramos mais, não notamos mais as perdas, vivemos em bandos isolados preocupados somente com o nosso próprio bem estar, nos tornamos criaturas unitárias, unilaterais, unicoração, unipensamentos, unisentimentos.

A gente vive à noite e dorme de dia, vive o dia e não dorme à noite, perde a noção do tempo, nos bares a noite ganha sentido, corremos sem direção, falamos mas não indagamos, não perguntamos mais porquê.

Não sonhamos tão mais, não acreditamos mais, não sorrimos mais, não agradecemos mais, não sentimos mais, brigamos com nós mesmos, não libertamos nosso coração, brigamos com a vontade e sobrepomos à ela a verdade. Porém a verdade da conveniência, a verdade que a sociedade acredita ser verdade. Nossos sonhos não acordaram ainda, não somos... nunca fomos ou fomos? Fomos.

Porém, o que um dia fomos se foi e não conseguimos colocar nada no lugar. Nos tornamos massa sem peso, somos garrafas sem líquido, somos a continuação do teclado, somos peça que tem uma certa vida no carro, somos o carro.

Nos tornamos a sociedade que Gepeto desenhou, nosso nariz não pára de crescer, mentimos para este, mentimos para aquele, mentimos todos os dias para nós mesmos... Ah... mentimos para nós mesmos...

Nos maltratamos, nos sufocamos, nos mutilamos a cada dia. Somos juízes dos outros, somos o dedo que em riste acusa. Somos a semente que não vingou, somos a gema do ovo que não nasceu.
Mas éramos o grito dos injustiçados, tínhamos sonhos, tínhamos propósitos, éramos a lágrima que caía dos olhos de um irmão torturado, éramos o sonho da revolução, éramos a república instaurada, éramos o direito adquirido, éramos a passeata, a greve generalizada, éramos a indignação, éramos o não, éramos a CLT, éramos as Diretas Já, éramos a vitória de setenta, éramos o fim da ditadura, éramos a Tropicália, éramos o Cinema Novo, éramos a Semana de Arte Moderna, éramos a Bossa Nova, éramos... éramos?

Éramos a História que hoje é contada, éramos o povo. Agora não somos mais, não mais...


Renata Martins é uma pessoa fantástica que infelizmente não vejo há um tempão... Ela faz faculdade de cinema e escreve textos muito bons como este.

3 comentários:

  1. Haikai para o momento sardinha de ônibus...

    Rostos anônimos na massa
    comprimida, dolorida
    O relógio corre, pessoas atrás de minutos.



    Cara-pálida, cara cinza
    A vida sem cor
    com trilha sonora de amor.

    Beijomeliga

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  2. Flor de laranjeira, adorei o carinho e a surpresa. bjs.

    Obrigada.

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  3. não sei se entendo e concordo com exatamente tudo do texto, mas em algumas coisas eu penso, e me preocupo, tanto quanto... tipo, o que está acontecendo com o mundo, com a cidade de Sao Paulo?hehe

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